14 de maio de 2008

Isso é ciúme!




Sentimento confuso: ele até tem seu charme, mas pode virar doença
Por Vanessa Oliveira • 25/10/2007

"(...) me fez padecer com a desatenção de Capitu e ter ciúmes do mar. Não, meu amigo. Venho explicar-te que tive tais ciúmes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não fora ou acima dela. É sabido que as distrações de uma pessoa podem ser culpadas, metade culpadas, um terço, um quinto, um décimo de culpadas, pois que em matéria de culpa a graduação é infinita. A recordação de uns simples olhos basta para fixar outros que os recordem e se deleitem com a imaginação deles".

Ciúmes do mar, do que podia estar na cabeça do outro, da recordação de outros olhos que não fossem os seus. Ciúmes, ciúmes... Não dá para negar. São perturbadores os pensamentos de Bentinho, personagem criado por Machado de Assis, em Dom Casmurro. Tão perturbadores que não é possível saber se os fatos do romance são reais ou frutos da imaginação do narrador. Ao ponto de, nós, leitores, muitas vezes nos vermos incitados a acreditar em tais palavras, culpando o amigo Escobar e a mulher Capitu por traição. Ciúmes... o tal monstrinho verde, já citado também por William Shakespeare, que pode tomar grandes proporções e causar estragos, não só em casamentos e namoros, como também em amizades, relacionamentos familiares etc. Tudo depende do tamanho que damos para essa "criaturinha".

O ciúme não é uma doença isolada. Ele é conseqüência de algum problema, na maioria das vezes, relacionado à personalidade

"A partir do momento em que o ciúme se torna doentio, a pessoa começa a pensar em coisas que existem em cima de coisas que não existem", afirma o psiquiatra Eduardo Ferreira, autor dos livros "Ciúme - o medo da perda" e "O lado amargo do amor". Uma definição próxima ao chamado "delírio", segundo ele. "Se a mulher chega com o relógio do lado direito é porque ela estava com outro. Se ela deixou de passar batom é porque ela vai encontrar alguém. E começa a vasculhar bolsas, procurar mensagens em celular etc.", exemplifica. Para Eduardo, é fácil distinguir quando esse sentimento começa a atrapalhar: o ciumento desconfia. Já o muito ciumento cria certezas a partir do nada. De qualquer maneira, os dois níveis de sentimento estão ligados ao medo da perda ou da exclusão. O indivíduo se apega a alguém ou a alguma coisa e se torna dependente. Isso pode ser verificado desde cedo na vida de uma pessoa.

O psiquiatra explica que o ciúme já se manifesta claramente entre os três e cinco anos de idade - momento em que a criança ainda acredita que é o centro do universo e se defronta com o outro. Este, que pode ser tanto um coleguinha que disputa seu brinquedo, como seu pai que concorre pela atenção de sua mãe (ou vice-versa). Nesse último exemplo, o famoso complexo de Édipo, que a maioria costuma associar à questão sexual, e que também pode ser existencial, relacional. "Com o tempo, outros fatores influenciam no desenvolvimento ou não desse sentimento. O homem é um ser biopsicossocial", diz. Em outras palavras, as causas de nossos transtornos podem estar no corpo (bio), no psiquismo (psico) e no meio sócio-econômico cultural (social). Situando o ciúme sob esse aspecto, podemos exemplificar da seguinte maneira:

Bio: A falta do neurotransmissor serotonina pode gerar uma baixa auto-estima. O que pode levar à insegurança e também ao ciúme.

Psico: Uma criança criada por uma mãe ultramedrosa pode se tornar um adulto apegado demais às pessoas e às coisas e, com isso, ciumento.

Social: O Brad Pitt chega a uma festa. O marido de uma mulher ligada à estética, inconscientemente pode estabelecer um sentimento de competição com o galã. Ou seja, ciúme.

Eduardo ressalta que esse sentimento deve ser visto como um alerta de que algo não vai bem. "O ciúme não é uma doença isolada. Ele é conseqüência de algum problema, na maioria das vezes, relacionado à personalidade". De acordo com o psiquiatra, ele deve ser visto como uma dor, que indica uma doença, mas não é propriamente a doença. Ela só sumirá se a causa for tratada. Da mesma forma, acontece com o ciúme. Ele só irá melhorar se aquilo que o tiver gerado for identificado e tratado em uma terapia.

O ciumento

"Os meus ciúmes eram intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou menos reconstruiria o céu, a terra e as estrelas." - Bentinho, em "Dom Casmurro".

O mais comum, de acordo com Eduardo, é o ciúme exagerado em relação ao parceiro e a filhos. "A mãe costuma ser muito apegada aos filhos, ao ponto de querer controlar os passos deles. O que até pode ser compreensível se usarmos como desculpa o mundo violento em que vivemos, atualmente. O conceito ciúme pode se misturar com o zelo, considerado saudável", afirma. No entanto, nada impede que isso aconteça também com objetos. E é o que faz sentido para o psiquiatra: o ciúme de algo comprado, em vez de alguém. "A mulher, o amigo, o filho ou o marido não é propriedade de outra pessoa. Agora, uma casa é! Eu tenho uma visão existencialista em relação a isso. Estou casado e não sou casado". Enfim, aquela famosa frase de que "quem ama, cuida", às vezes é bem verdadeira também com um carro, uma moto ou uma simples camiseta dada por alguém especial.

É o que acontece com o estudante de ciências sociais, Roberto Moura, e seus pertences. CDs? "Quando alguém pega um encarte já dá uma dor no coração". Livros? "Antes de emprestar (o que acontece raramente) eu checo as condições dele para evitar ser injusto. Depois, confiro se a pessoa deixou alguma marca nele ou amassado". Guitarra? "Não empresto de jeito nenhum! O modelo foi difícil de achar". Ou seja, se você é relaxado em relação a essas coisas, pense duas, três, quatro vezes antes de pedir algo emprestado a ele. Não que Roberto seja ciumento. Ele é cuidadoso.

"As pessoas que são muito ciumentas costumam negar que sejam assim. Às vezes eu sou e não sei", afirma o estudante. Para ele, é questão de dar valor às coisas que se tem. E como elas têm valor! Quando estamos falando de livros, por exemplo, o zelo vai aos extremos, como nunca abrir uma edição a 180o graus, guardar exemplares em plásticos para não pegar poeira e, às vezes, usar até uma caixa para levá-los para a faculdade. São todos organizados e sem marcas. Já chegou, inclusive, a se fazer de desentendido diante de um pedido para xerocar seu livro. Só empresta mesmo para quem confia. Segundo Roberto, é o tipo de pessoa que ele não vai perder tempo brigando. "Regra" que não vale para os desconhecidos ou alguém que não tenha muito contato. "Nesse caso, além de ficar revoltado com a situação, vou ficar pensando depois no fato", comenta. E assim ele é com as coisas que compra: bem apegado. Já com as pessoas, garante ser mais tranqüilo. "Acho que o ciúme que tenho pela minha namorada é normal. Nada que estresse".

"O ciúme é um sentimento que todo ser humano está sujeito a sentir. Uns de maneira mais intensa e outros, de uma forma um tanto mais leve. É natural sentir ciúmes da pessoa amada, mas ser inseguro e começar a criar cenas de desconfiança, gera atritos na relação", afirma a psicóloga Patrícia Gugliotti. Ela aconselha: se a pessoa consegue assumir que o ciúme está atrapalhado e prejudicando tanto o outro com a si mesmo, deve procurar uma ajuda terapêutica e trabalhar o porquê desse comportamento. O que é bem difícil. "Tem paciente que chega aqui no consultório reclamando de algumas coisas. Quando vou ver, ele está falando sobre ciúme. Só não consegue admitir". Segundo Patrícia, as pessoas, no geral, têm vergonha em assumir esse sentimento.

O alvo do ciumento

"O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-Cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca." - Bentinho, em "Dom Casmurro", questionando a postura de Capitu diante da traição.

Lidar com o ciúme do outro não é nada fácil. Ainda mais quando o outro, seja ele pai, amigo, irmão ou até desconhecido não assume que precisa de uma orientação. Indicar essa necessidade é válido. No entanto, a situação pode chegar a um ponto que só depende do próprio ciumento procurar ajuda. "Enquanto a pessoa consegue controlar esse sentimento, está O.K. O que não dá é desconfiar o tempo inteiro do outro e provocar reações negativas por conta de suas fantasias", diz Patrícia. Isto é, quando, realmente, são apenas fantasias.

O interessante é que a psicóloga destaca que, muitas vezes, o ciumento tem até razão nos relacionamentos amorosos. Isso porque o(a) parceiro(a) dá motivos ou se comporta de forma que deixa o outro inseguro. Sendo assim, antes de tudo, torna-se importante que o outro não deixe dúvidas sobre suas atitudes e não provoque cenas de forma premeditada. Clareza e diálogo são as armas contra esse "monstrinho". Até mesmo quando ele está em uma forma mais branda. "Agora, se mesmo assim os conflitos continuarem, cabe a pessoa decidir se aceita ficar em um relacionamento sob essas condições", diz Patrícia.

A psicóloga ainda chama a atenção para o fato de as mulheres acharem lindo determinadas demonstrações de falta de controle do parceiro. "O homem faz a cena de ciúme de uma forma mais velada, já a mulher expressa mais facilmente esse sentimento e acaba ficando com fama de ciumenta, no geral". Fato também verificado pelo psiquiatra Eduardo. Ele conta que a maior parte de sua clientela é formada por mulheres. E que elas, muitas vezes, levam o companheiro para uma terapia, já que ele não tem iniciativa própria nesse sentido.

"Se a mulher percebe que o cara é ciumento, não deve investir na relação. Não deve entrar, porque depois para sair... É uma gaiola dourada!", diz Eduardo. O psiquiatra afirma que a mulher, por questões culturais, ainda busca seu príncipe encantado - aquele de quem ela vá depender emocionalmente. Um homem que possa lhe dar segurança e resolver seus problemas. E que, por isso, acaba procurando no lado masculino esses traços ciumentos, que significariam proteção. "Se ela não tomar cuidado, o tal protetor pode acabar virando um seqüestrador emocional", afirma. Ou seja, no final das contas, sem Escobar ou Bentinho.


Vanessa Oliveira

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